“A maior parte das pessoas entregam-se à miragem de uma dupla crença: acreditam na perenidade da memória (dos homens, das coisas, dos actos, das nações) e na possibilidade de reparar (actos, erros, pecados, injustiças). São as duas igualmente falsas. A verdade situa-se justamente nos antípodas; tudo será esquecido e nada será reparado. O papel da reparação (pela vingança e pelo perdão) será representado pelo esquecimento. Ninguém reparará as injustiças cometidas, mas todas as injustiças serão esquecidas.”
Milan Kundera, A Brincadeira
Ocasionalmente, continuo a ler o blog do Ivan. Por isso (por ser ocasionalmente) é que só agora respondo ao post do voto em branco.
O Ivan expõe, democraticamente, a sua opinião sobre o voto em branco, considerando-o de um moralismo pateta, que o votante em branco se julga o cúmulo do civismo, etc. No entanto, abre excepções para casos especiais, como a rejeição do sistema político (caso do Irão.)
O voto em branco não é, para mim, uma “forma moralmente correcta de neutralidade”. É uma escolha. Neste preciso momento, o votante em branco NÃO VÊ NENHUMA “alternativa política esboçada ou concebível.” (o que não significa que numa próxima eleição a situação se mantenha, obviamente.) Bem sei que o Ivan me responderia com aquele texto do The Guardian, que ele já postou no blog por duas vezes, que diz (resumidamente) que o voto é entre o mau e o muito mau. Mas porque há-de o eleitor ter mesmo de escolher? Rejeitar o sistema político pode não significar rejeitar a democracia; pode significar rejeitar o sistema democrático actual. Recordo-me de uma colega de curso que, numas eleições para a DG/AAC, recebeu o boletim de voto e, ostensivamente e sem se dirigir à cabine de voto, dobrou-o em quatro e introduziu-o na urna. Foi um claro voto de protesto… podem-me dizer que não serviu para nada, mas esse argumento para mim não pega – como não pegará para o Ivan – porque não é suposto votarmos apenas para nos sentirmos vencedores (embora a maioria proceda assim.) Ela exprimiu o seu voto claramente: não confio nesta pandilha de mafiosos.
O Ivan ataca também o secretismo do voto. Não me convence (nem vou falar das eleições no Iraque ou no Afeganistão, falemos só de Portugal); todos sabemos que o grau de cidadania num país que começou agora a destruir a sujeição do Zé-Povinho ao paternalismo das autoridades, sem o substituir por um sentido de responsabilidade cívica para com o País, não pode ser muito desenvolvido. E o voto público arrepia-me porque me faz lembrar uma cena de um romance de Kundera em que um indivíduo que julgava que tinha bastantes amigos foi expulso do Partido Comunista Checoslovaco e da Universidade pela assembleia de estudantes, e nunca mais recuperou a confiança na natureza humana porque viu os seus amigos levantarem o braço para a sua expulsão, levados pelo rebanho. Mas coloca-me o desafio de “expor hesitações, dúvidas e angústias”, e eu aceito.
Até ao dia de reflexão, hesitei entre votar em branco e votar Bloco. Sei que votando bloco não tenho direito de opinar sobre o aborto. Não quero ver Portugal fora da NATO. Acima de tudo, tenho dúvidas sobre as capacidades de gestão económica de um eventual governo com a participação do bloco, e da crise de confiança que um tal governo causaria aos empresários e à economia em geral. O Bloco é relativamente omisso no que toca a estas matérias; a ênfase no choque fiscal e no combate à corrupção não é acompanhada pelo esclarecimento do que vamos fazer para aumentar a competitividade da economia. O Bloco sabe, acima de tudo, dizer mal, e tem tido sucesso e posicionar-se como partido anti-sistema.
Foi por isso, e por me identificar com a maior parte – não com a totalidade – do programa “sociológico” do Bloco, por achar que é bom que a democracia tenha um partido que diga mal e que lute pela mudança de costumes, que votei no Bloco. Gostava que o Bloco insistisse mais na questão da necessidade de formar cidadãos esclarecidos para nos livrarmos de vez dos hábitos da ditadura, e não apenas de aproveitar o descontentamento dos jovens de mentalidade urbana através do radicalismo; por isso, suspeito que o Bloco estará a esgotar o seu modelo de sucesso – ou então são os tais tiques totalitários que o impedem de ir mais além. Também pode acontecer que os bloquistas pensem todos como o Ivan e vejam nos portugueses um espírito de cidadania desenvolvido e de cabeça erguida. Se é assim, estão apenas lamentavelmente equivocados…Espero atentamente para ver a acção do bloco durante esta legislatura para ver se corresponde às minhas expectativas. Espero também para ver se o PS consegue um governo competente e se o PSD consegue renascer com um projecto novo – mas as minhas expectativas em relação aos dois maiores sistemas eleitorais tachísticos portugueses são muito baixas, e daí que nenhum deles fosse para mim uma opção de voto, neste momento. (De resto, embirro fortemente com a democracia-cristã e com o marxismo-leninismo. Pensei vagamente em votar no PH ou no POUS, mas não me informei devidamente sobre as suas propostas.)
Dois amigos meus são grandes de U2: o Werklozen e o “falecido.” Serão que conseguiram comprar bilhetes para o concerto do ano?